Por Marcela CANIZO
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
ABSTRACT: A hundred years after the “Japonisme”; the” Superflat”, “Coloriage” and “Fat Boy” exhibitions organized by Murakami Takashi aligned the Japanese pop with the artistic traditions of the XVI Century and the post war, through a curatorial, artistic, and theoretical work. Does this work constitute a new globalized “Japonisme”?
KEYWORDS: Orientalism; Japonisme; Visual Culture; Japanese pop culture; Mitate-e.
“… This term, that was used by an art critic in the late sixteenth century to define the works of the painter Eitoku Kanô, embraces several different notions: bravery and power, with all the seductiveness those traits may have and at the same time a keen sensitivity…I thought I too would like to create a form of art that was at the time vigorous, sensitive and intelligent…With these characters…I wanted, I think, to create my own “gods of art”…
Takashi Murakami
Enquadramos este trabalho em torno ao estudo dos orientalismos e suas representações, na tentativa de observar alternativas ao modelo orientalista tradicional em relação com possíveis mudanças nas formas de circulação de imagens entre o Japão e o ocidente entre 1868, data da restauração Meiji, e a transição entre fim de século XX e inícios do século XXI.
A partir da análise da proposta crítica, de curadoria, e artística de Murakami Takashi, gostaríamos de propor algumas hipóteses de mudança do paradigma orientalista do século anterior. Para tanto, gostaríamos de apresentar brevemente alguns aspectos significativos do trabalho desenvolvido pela empresa Kaikai Kiki Co. desde o fim do século XX em relação com a apropriação do imaginário orientalista em torno a cultura pop japonesa.
Em 1996 o artista criou a multinacional Hiropon Factory na periferia de Tókio. A empresa contava com um número de assistentes que ajudavam na produção das obras e na edição do Hiropon, a publicação periódica da empresa.
Em 1998 viaja aos Estados Unidos onde abre um pequeno atelier, e em 2001 renomeia a empresa como Kaikai Kiki Co., Ltd. tornando-se uma fábrica sediada em Tókio e Nova York com aproximadamente 100 funcionários e 18 linhas de negócios.
A referência inicial sobre a “inspiração” do nome da empresa na escola Kanô, oferece um enquadramento conceitual interessante. De acordo com Hashimoto (1991) Kanô Eitoku (1543-1590) foi quem levou a prosperidade a fama da escola de pintura Kanô no período Monoyama (1574-1599). Sua linhagem formava a divisão principal da escola Kanô e ele, a partir dos ensinamentos de seu avô, Motonobu, quem havia estabelecido as bases estilísticas da escola e quem havia criado um sistema de treinamento para artistas jovens, foi além do estabelecido pelo avô, criando um estilo chamado taiga (grande pintura, em larga escala), em oposição a saiga (pintura delicada, minuciosa), e ele é reconhecido por esta grandiosidade visual e bem ligada a tradição visual japonesa.
“Eitoku realizou também um grande Kacho-ga(pintura de flores e pássaros), de dezesseis painéis de 175,5 cm cada, utilizando sumi e folhas de ouro sobre papel, que marcou um padrão para a produção Kanô, conseqüentemente não só temática como tecnicamente. A mudança de estações e a escolha de pinheiros e cerejeiras seguem a tradição anterior, mas a escala e muito aumentada; a relação entre o alto e o baixo, direito e esquerdo, é mais importante para Eitoku do que a recessão de fundo a fundo, diferente de Motonobu, dando a sua pintura um aspecto mais bidimensional.”
Vale a pena destacar que a escola Kanôcontinuou fortalecendo sua importância na Historia da Arte Japonês, com um viés didático, focado na copia dos clássicos, para fins de apreciação e julgamento, e de material didático para seus discípulos.
Em direta referencia ao trabalho coletivo de formação de artistas sob orientação de um mestre, Takashi Murakami desenvolveu na sua empresa, uma “escola” e produtora de jovens artistas, criando um corpo crítico através da curadoria das exibições realizadas entre o ano 2000 e 2005. Chiho Aoshima, Chinatsu Ban, Akane Koide, Mahomi Kunicata, Mr., Rei Sato e Aya TaKanô, que em vários dos casos começaram como assistentes do Studio de Murakami, continuando agora com suas respectivas carreiras individuais.
O próprio Murakami é um artista formado na técnica tradicional de nihonga que decidiu continuar sua carreira na arte contemporânea, absorvendo rapidamente o universo da chamada cultura pop japonesa, tanto no estilo como nos objetos usados, e fazendo uma leitura da cultura Otaku. Como parte do trabalho pessoal, ele desenvolveu através de sua empresa um importante trabalho crítico, teórico e de curadoria a partir da exibição Superflat no ano 2000, seguido por Coloriage em 2002 e “Little Boy” em 2005 encerrando a trilogia. Sua ultima exibição, ©Murakami, já é um trabalho pessoal, uma retrospectiva da obra artística, inaugurada em 2007.
Estamos então em face de um artista/curador/homem de negócios, que substitui as dicotomias arte culta/sociedade de consumo, artista engajado/empresário do mundo da arte, artista/curador, e assim por diante, colocando “as mãos na massa” e convidando à participação sem distinções de hierarquia, alinhando desta forma na tradição da arte japonesa por um lado, unido à uma visão didática, política e estética da arte no mundo globalizado.
Não podemos deixar de destacar o trabalho desenvolvido para a marca do mundo da moda Louis Vuitton, que, porém seja considerado um aspecto puramente lucrativo de sua produção, tem alavancado a imagem de artista global, criando um sucesso muito além do esperado, ultrapassando o momento natural de sucesso de uma temporada. A linha assinada por Murakami já e uma marca registrada dentro da produção da Louis Vuitton.
Pensando em lugar de cruzamentos, e colocando a cidade de Paris como centro, não é neste momento contemporâneo a primeira vez que a arte e cultura japonesas impactam o publico ocidental com sua estética e estilo. A Exibição Universal de Paris de 1867 e 1878 foram os atos “sociais”, que, dando continuidade à abertura das fronteiras econômicas e culturais do Japão no período Meiji (1868-1912), mostraram a arte japonesa e influenciaram o mundo da arte ocidental, gerando o movimento chamado Japonismo e impactaria fortemente em importantes artistas da época como Monet ou Van Gogh.
Iniciou-se então um caminho de via dupla, acontecido num momento estratégico da historia ocidental. Nesse contexto, o primitivismo que resgatava o simples e humano comoveu aos artistas da época, que viviam um momento de rápidas mudanças a través da revolução industrial. A nostalgia pelo perdido encontrou identificação no mono no aware que encontrou eco no espírito romântico da época. Em termos visuais, houve uma objetivação do “outro” “japonês”, considerado então como “puro” e “primitivo”, num olhar contaminado pela tradição colonialista de ocidente,e por outra parte, devido ao isolamento vivido pelo Japão durante séculos que deixou a sensação, e até a convicção da “autenticidade” e “nacionalidade “ monolítica da arte japonesa como tal.
Na perspectiva norteamericana contemporânea, Napier (2007) destaca nesse processo histórico “orientalista” da descoberta do outro, o imaginário profuso gerado pelo Japão nos países ocidentais. Isto gerou vários Japões, criados pela fantasia dos ocidentais perante o Japão Por outra parte, menciona o impacto da cultura do animé e suas ramificações no cenário contemporâneo da cultura pop ocidental, como objetivação ou fetichização do pop japonês por parte do ocidente. Na escolha da palavra “fantasyscapes”, inspirada nas teorias de Appadurai (1998), faz alusão aos espaços de fantasia criados pelo impacto da cultura japonesa em ocidente, como espaços de jogo e de prazer. Mas não se trata somente de prazer, e aqueles que conhecem a cultura Otaku bem podem dizer respeito disso.
Sob nossa perspectiva, talvez não se trate somente de um espaço de fantasia orientalista, como Murakami Takashi mostra. O artista trabalha no cenário da arte contemporânea, onde a produção do Japão tem muito a aportar, principalmente em relação com um panorama pós-colonial, onde, a imaginação tem viabilizado para os artistas japoneses o questionamento do processo de ocidentalização do pós guerra e que continua até nossos dias. Talvez possamos pensar no papel da imaginação como substituição da memória que foi tirada do Japão no processo de “naturalização” do período do pós-guerra.
Na outra face da moeda, os homens de negócios, artistas e intelectuais japoneses que começaram a viajar após a restauração Meiji, rapidamente incorporaram os conhecimentos do ocidente, abrindo-se também o processo de “ocidentalização” que,com diversas nuances, continuou durante todo o século XX. Podemos considerar então ao Japão como uma cultura de entre-lugar, construida do tradicional e do ocidental/moderno, cuja junção criou uma cultura complexa e profunda, construída também a partir de “fantasyscapes” em relação com ocidente. O imaginário ocidental semeou, cresceu e deu fruto na cultura japonesa, e é no lugar central deste paradoxo que Murakami Takashi se situa perante o mundo ocidental. Ele entra na sociedade do espetáculo para colocar uma proposta nacional, porém intrinsecamente plural perante uma sociedade ocidental com algumas remanências do olhar orientalista no final do século XX.
Consideremos de que forma observa Murakami, na curadoria da exibição Tokyo Pop, o impacto dos Estados Unidos sobre o Japão do pós guerra:
“postwar Japan was given life and nurtured by America. We were shown that the true meaning of life is meaningless, and were taught to live without thought. Our society and hierarchies were dismantled. We were forced into a system that does not produce “adults”. The collapse of the bubble economy was the predetermined outcome of a poker game only America could win”.
A nova irrupção da cultura japonesa no fim do século XX na visão do curador do Superflat, dá conta do que ficou na sombra. Toda essa historia do pós guerra foi “sanitizada” pelo Japão, porém, entre suas raízes encontra-se o nascimento e florescimento da cultura Otaku, rejeitada no começo, e re-apresentada na nossa proposta como “novo japonismo globalizado”. O exemplo do Kakai kikitraz a memória, a historia e o futuro da arte no Japão, como produto feito de cruzamentos e paradoxos que fala do Japão, mas também de Estados Unidos e de ocidente de maneira geral. Gostaríamos de colocar que o valor reside não somente em estabelecer relacionamentos entre a historia, o Japão pré-moderno e o futuro do Japão pós-moderno, a partir da cultura Otaku, onde Murakami apresenta a raiz da “japonesidade” da cultura Otaku ligando ela a escola Kanō, apresentando junto ao Japão ocidentalizado.
Há um antecedente da trilogia Superflat, Coloriage, Little Boy, que é a iniciativa da exibição Tokyo Pop como apresentação ao público da cultura Otaku no mundo da arte contemporânea. O Superflat aparece como a sublimação da estética Tókio Pop como estética do pós-moderno. Se a arte conceitual procura novas regras para pensar a arte, mas que pensar num novo estilo estético, Murakami e um artista conceitual. Criou um gênero novo que integra praticas culturais desvalorizadas localmente, descobrindo uma linguagem potencialmente nova no processo comunicativo de pessoas longamente não relacionadas com o mundo da arte culta.
Na proposta do Superflat Murakami combina vários elementos de diversa origem para criar sua curadoria e permeia assuntos como a pintura tradicional japonesa como antecedente do quadro plano modernista, a ausência da perspectiva central na tradição pictórica oriental, a organização não hierárquica das artes, sem distinções entre arte culta, arte de massas ou artesanato, a tela plana da cultura digital, e o “amassamento” de Hiroshima e Nagasaki como conseqüência das bombas.
“Super flat is an original concept of the Japanese who have been completely westernized”
Paradoxalmente, Murakami Takashi escreveu sua tese de doutorado em 1993, “Considering the meaning of the nonsense of meaning in art”, porém sua curadoria e obra artística parece ser uma busca do sentido e uma colocação de valor na arte contemporânea japonesa, a partir de uma critica à suposta “infantilização” vivida pela sociedade japonesa do pós guerra.
Para encerrar esta aproximação ao “Japonismo Globalizado“ do Kaikai Kiki Co. gostaria de avaliar os aspectos acima expostos sob a luz de um recurso estilístico, como um modelo possível para a abordagem da cultura visual do Japão. Através das imagens e assuntos escolhidos pelo artista, percorremos junto com Murakami Takashi a repetição e citação, de temas clássicos, de procedimentos e didáticas antigas, de uma permanente recorrência à historia da arte japonesa e seus protagonistas, como recurso para revalorizar a cultura atual e apresentar esta cultura ao mundo ocidental.
Este recurso paródico, que floresceu no período Edo (1603-1868) chama-se Mitate-e e explica, num período histórico, a recorrência de imagens e assuntos tradicionais e clássicos. Nossa hipótese, hoje, almeja estudar Kaikai Kiki, Co. sob a luz deste procedimento, com um ingrediente a mais, que sería o componente “ocidentalização” e que coloca um estagio a mais no processo de citação e “hibridização” de temas e imagens. Desta forma, a citação e o desdobramento de assuntos do Japão pré e pós moderno na trilogia vem se alinhar, não somente com a tradição mas também com a modernidade. Nesse enquadramento referencial, também traz a arte pop norteamericana e o processo de ocidentalização do pós guerra.
Este “Japonismo globalizado” aparece como um quebra-cabeça instigante que pode dar luz a uma nova visão sobre as formas de representação da sociedade japonesa do pós-guerra com suas luzes e sombras.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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